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quinta-feira, 15 de maio de 2008

O Xadrez e a Guerra Fria

Daniel Johnson* Especial para a Revista Prospect

O xadrez sempre foi um simulacro dos confrontos políticos e militares, com todas as suas jogadas de abertura e xeques-mates. Nós imaginamos diplomatas e generais se defrontando de cada lado do tabuleiro do xadrez. O jogo foi internacionalmente popular por mais de dois séculos, mas, assim como o gênero literário do romance policial, ele também ensejava a sua própria guerra fria. Vamos a um dentre vários exemplos: a cena inicial de um dos primeiros filmes de James Bond, "From Russia With Love" ("Moscou Contra 007"), é uma partida de xadrez entre dois mestres. E na vida real, foi a partida entre Fischer e Spassky, em 1972 - quando um gênio norte-americano excêntrico esmagou 25 anos de hegemonia soviética no xadrez -, que marcou o início do fim da Guerra Fria. O xadrez funcionou como uma mega-metáfora para essa guerra psicológica, cujo significado amplo deriva do importante papel do jogo na sociedade comunista soviética. Os russos podem ter ficado para trás em termos de tecnologia militar ou competição econômica, mas nos tabuleiros de xadrez eles reinaram supremos. Um campo de batalha que pela primeira vez na história se tornou genuinamente global poderia ser metaforicamente traduzido nos 64 quadrados do tabuleiro. O xadrez proporcionou uma das válvulas de escape mais seguras que manteve a tampa sobre a Guerra Fria. Mas como o xadrez veio a desempenhar esse papel, ao mesmo tempo de símbolo da guerra e de sua antítese? E como o xadrez iluminou o processo pelo qual o Ocidente triunfou sobre o comunismo? O lugar do xadrez na cultura européia reflete de perto a ascensão e a queda da elite culta, para a qual o jogo era a modalidade preferida de recreação. A história começa com uma imagem que registra um dos grandes encontros da modernidade: o retrato de um grupo, pintado em 1856 por Moritz Daneil Oppenheim, que mostra três grandes figuras do pensamento do século 18 - o dramaturgo Gotthold Ephraim Lessing, o místico suíço Johann Caspar Lavater e o filósofo judeu Moses Mendelssohn. O foco da pintura, em torno do qual há ornamentos do Iluminismo, é um tabuleiro de xadrez. Lessing e Mendelssohn se conheceram em 1754, após um amigo mútuo recomendar este último ao já célebre Lessing, como parceiro de xadrez. Foi um encontro providencial de dois homens notáveis, mas também de duas culturas. Em "Nathan the Wise" ("Nathan, o Sábio"), um livro que foi o trabalho mais popular do autor, Lessing, o cristão, descreveu um Mendelssohn idealizado como Nathan: inteligente, esclarecido e judeu. O progresso do xadrez, passando pelo estágio de hobby e atingindo a maturidade artística e científica, foi acelerada pela assimilação judaica, que transformou a Bildungsbürgertum, a classe média culta da Mitteleuropa que falava alemão, em agentes de reforma modernista. A simbiose judaico-alemã - apesar de maculada pelo anti-semitismo - proporcionou o contexto cultural no qual o xadrez poderia se transformar no entretenimento intelectual preferido. E de meados do século 19 em diante, uma proporção extraordinariamente alta de mestres de xadrez, incluindo a maior parte dos grandes campeões mundiais, era composta por judeus. O xadrez é um caso especial de um fenômeno mais genérico - o QI acima da média dos "judeus ashkenazic de origem européia" - que gera muitas questões e ainda desafia as explicações simples. Não sabemos se os judeus possuem uma tendência inerente para brilharem no xadrez, ou se sentem atraídos pelo tabuleiro porque este jogo intelectualmente desafiador, competitivo e sedentário se encaixa no estereótipo prevalecente do judeu da Europa do século 19. O que sabemos é que aquilo que Gerald Abrahams identificou como a "mente do xadrez" - uma combinação de memória, lógica e imaginação - tem muito em comum com as habilidades que eram e são características da vida intelectual judaica. Acima de tudo, o estudo de textos sagrados remete a um jogo sobre o qual mais livros foram escritos do que sobre todos os outros jogos tomados em conjunto. O jogo do livro parece ter exercido uma atração muito especial sobre as pessoas do livro. No Nathan, de Lessing, o xadrez é descrito como uma paixão particular de Saladino, o esclarecido sultão muçulmano, que levou um xeque-mate da sua irmã Sittah. Para os intelectuais cosmopolitas de Lessing, o xadrez era uma forma de superar o preconceito - religioso, racial, nacional e sexual. Por excluir o fator sorte e, portanto, desencorajar apostas, o xadrez era o único jogo digno de um cavalheiro (até 1987 era o único jogo permitido no Palácio de Westminster). Mas o status do xadrez no Iluminismo foi ambíguo. O jogo fascinou vários dos expoentes do movimento, do filósofo e matemático Gottfried Wilhelm Leibniz (que antecipou o computador de xadrez) ao enciclopedista Denis Diderot. Mas o xadrez, que era um passatempo nobre desde a sua primeira onda de popularidade dez séculos atrás, na corte do califa Haroun al-Rashid, em Bagdá, ainda era visto de forma geral como uma diversão frívola de uma classe voltada para o lazer, e não como uma atividade séria. Ao final da era vitoriana, o livro "Through the Looking Glass" ("Através do Espelho") de Lewis Carrol ainda tratava o xadrez como entretenimento infantil. No decorrer dos séculos 19 e 20, o xadrez emergiu como atividade popular competitiva, com torneios internacionais que geravam amplo interesse popular - o primeiro deles em Londres, em 1951. Os balneários e spas da burguesia européia tratavam o xadrez como atração turística, e forneciam os meios financeiros para que dezenas de mestres ganhassem a vida com o jogo. Alguns poucos alcançaram proeminência em outras profissões: Adolf Anderssen era professor, Ignác Kolisch banqueiro, Siegbert Tarrasch médico, Amos Burn comerciante, Milan Vidmar engenheiro, e Ossip Bernstein advogado. Outros valorizavam mais o seu desempenho acadêmico (Howard Staunton e Emanuel Lasker) ou status social (Paul Morphy e José Raúl Capablanca) do que o talento como enxadristas. No entanto, por volta de 1900, o xadrez de alto nível não era mais um jogo de amadores, e os profissionais não precisavam mais passar pela indignidade de jogar com quem quer que os desafiasse. Em vez disso, o xadrez passou a aspirar ao status de uma forma artística e de uma ciência. Os anos anteriores a 1914 foram de uma era dourada do xadrez, sobretudo na Europa Central. Os termos "mestre" e "grande mestre" deram ao xadrez uma certa mística, como se os iniciados no jogo formassem uma espécie de maçonaria. Mas o uso desses títulos não é muito antigo, remontando, no máximo, ao início do século 19: a primeira menção registrada ao termo "grande mestre" na Inglaterra é de 1838. Inicialmente, "mestre" significava um jogador experiente, profissional ou não, enquanto que "grande mestre" ficou reservado a um punhado de mestres de estatura internacional. Em 1914, o czar Nicolau 2º concedeu o título de grande mestre a cinco finalistas do torneio de São Petersburgo - Lasker, Capablanca, Alexander Alekhine, Tarrasch e Frank Marshall. Mas o título só foi formalizado pela Federação Mundial de Xadrez, a Fide, que em 1950 criou uma hierarquia de títulos, culminando com o de "grande mestre internacional", que seria conquistado por um jogador que apresentasse consistentemente bons resultados em competições de grandes mestres. O resultado foi uma gradual banalização do título, e atualmente há várias centenas de grandes mestres. A lacuna entre a vasta maioria e o campeão mundial se ampliou a um tal ponto que Garry Kasparov era capaz de disputar partidas simultâneas contra algumas das equipes nacionais mais fortes, como a de Israel e da Alemanha, vencendo-as sem perder um jogo sequer. O primeiro grande mestre a ser reconhecido como supremo, o compositor François-Andre Danican Philidor, deve muito da sua fama no xadrez ao exílio. Prescrito pelo diretório revolucionário francês como membro da corte, ele foi obrigado a emigrar para Londres, onde ganhou a vida como jogador de xadrez. A façanha de Philidor de jogar xadrez vendado contra vários oponentes simultaneamente fez dele uma breve celebridade. Mas ele acabou morrendo como imigrante pobre. Os anos revolucionários de 1789, 1848 e 1917 fizeram com que vários outros jogadores de xadrez partissem para o exílio. Após a fracassada revolução de 1848, uma outra figura que seguiu para Londres foi Karl Marx. Marx adorava xadrez e - para o desespero da sua mulher, Jenny - desaparecia com os seus colegas imigrantes por dias seguidos para participar de torneios do jogo. Apesar de dedicar grande parte do seu tempo ao xadrez, ele nunca conseguiu ir além da mediocridade. Rousseau também foi um enxadrista boêmio, assim como seriam, mais tarde, Lênin e, especialmente, Trotsky (a notícia do triunfo de Trotsky na Revolução Bolchevique foi saudada pelo chefe dos garçons do Café Central em Viena com as palavras: "Ah, esse deve ser o nosso Herr Bronstein da sala de xadrez!"). Quando em 1917 os comissários da utopia abandonaram os cafés e se apossaram do Kremlin, trouxeram consigo o xadrez. Em meados da década de 20, a nova União Soviética decidiu adotar o jogo como uma forma de treinamento mental, uma preparação para a guerra e a paz. O xadrez era visto como uma demonstração do materialismo dialético, da ausência do fator sorte, o que o tornava apropriado ao gosto austero da liderança do partido. O xadrez foi classificado como um jogo que transcendia as classes sociais, não inconspurcado pela ideologia burguesa, e, portanto, apropriado para as novas organizações proletárias. E assim teve início a experiência sem precedentes da incorporação do xadrez à cultura oficial da revolução comunista. Enquanto isso, no Ocidente, os anos 20 testemunhavam o apogeu da arte modernista, que no xadrez teve o seu equivalente na escola hipermoderna, uma reação romântica ao classicismo da geração mais antiga. Assim como os artistas se voltaram para a abstração, ou os compositores abandonaram a tonalidade, no xadrez os jovens mestres fizeram experiências com movimentos que antigamente eram tidos como "feios", mas que incorporaram novas idéias estratégicas. O iconoclasmo na arte e no xadrez se aglutinou na pessoa de Marcel Duchamp, que jogava suficientemente bem para representar a França ao lado do campeão mundial, o imigrante russo Alexander Alekhine. Em 1929, no entanto, a bolha especulativa de prosperidade européia estourou, causando generalizados danos colaterais, não só nas artes e nas ciências, mas também no xadrez. O caso de Emanuel Lasker, que foi campeão mundial durante uma geração, de 1894 a 1921, ilustra o impacto da catástrofe européia sobre aquela que possivelmente foi a personalidade mais impressionante na história do xadrez. Lasker, filho de um pobre cantor judeu nascido na fronteira entre a Alemanha e a Polônia, era um matemático bom o suficiente para trabalhar com Einstein, além de poeta, inventor e filósofo com obras publicadas. Os seus trabalhos sobre a teoria dos jogos, e acima de tudo o seu "Manual de Xadrez", ainda são clássicos. Lasker conquistou a independência financeira por meio do jornalismo e das palestras, enquanto o seu prestígio possibilitou que obrigasse os organizadores a proporcionar remuneração adequada e condições de jogos para o xadrez internacional. Quando os nazistas chegaram ao poder, Lasker (então com mais de 60 anos e aposentado do xadrez) imediatamente atraiu uma atenção hostil. Os seus trabalhos filosóficos o tornaram amigo de Walter Rathenau, o ministro das Relações Exteriores assassinado por anti-semitas; a sua cunhada era a poetisa judia Else Lasker-Schüler, e a sua mulher, Martha, escrevia jornais satíricos banidos pelo Terceiro Reich. A casa de campo, o apartamento em Berlim e a poupança dos Lasker foram confiscados. Assim como milhares de outros judeus alemães, eles passaram a viver uma existência nômade no exílio. Se estabelecendo primeiro na Inglaterra, Lasker foi obrigado a retornar ao xadrez, e em grandes torneios em Zurique, Moscou e Nottingham, ele não perdeu para os maiores mestres das gerações mais jovens. O campeão mundial, Alekhine, declarou: "A idéia de xadrez como arte seria inconcebível sem Emanuel Lasker". Após o torneio de Moscou de 1935, Lasker foi convidado a ficar na capital soviética, vinculado à Academia de Ciências. Durante a sua estada de dois anos em Moscou ele aclamado pelo aparato partidário, e parece ter sido deixado em paz para prosseguir com seus estudos. Mas em 1937 Lasker levou a mulher para uma visita aos Estados Unidos, com a aparente intenção de retornar. Eles nunca retornaram. Àquela altura, Lasker não poderia desconhecer o grande terror promovido por Stalin, uma ameaça que se desdobrava ao seu redor, e o perigo que isso representava para estrangeiros. Lasker, o expoente máximo do "xadrez como uma forma de arte" não podia sobreviver nem na Rússia de Stalin nem na Alemanha de Hitler. A maior parte de sua família pereceu no Holocausto, mas a sua sobrinha Anita, que foi obrigada a tocar na banda do campo de concentração de Auschwitz, sobreviveu para contar sua história. Guerra e xadrez eram duas coisas que a União Soviética sabia fazer. E essas duas coisas estavam conectadas desde o princípio na pessoa de Nikolai Vasilyevich Krylenko (1885-1938). Lênin nomeou Krylenko chefe do comissariado de justiça, tão logo os bolcheviques se renderam aos alemães. Quando a Cheka lançou o terror vermelho no final daquele ano, Krylenko declarou: "Precisamos executar não só os culpados. A execução de inocentes impressionará ainda mais as massas". Krylenko colocou essas idéias em prática no decorrer da sua carreira sangrenta. Depois, em 1937, quando Stalin se voltou contra os veteranos da polícia secreta, Krylenko foi não só "liquidado", mas também varrido da história. Somente nos anos 60 o velho monstro foi reabilitado como um dos fundadores do xadrez soviético. Isso porque, em 1924, Krylenko assumiu a tarefa de transformar o xadrez no jogo nacional da União Soviética. Como presidente da seção de xadrez do conselho supremo de cultura física das repúblicas socialistas russas, Krylenko persuadiu o Kremlin a organizar o primeiro torneio internacional em Moscou, em 1925, um evento que foi precursor de outros dois, um em 1935 e o outro em 1936. Na sua introdução ao livro do torneio, ele escreveu: "Em nosso país, onde o nível cultural é comparativamente baixo, onde até agora os passatempos típicos das massas eram a fabricação de bebidas alcoólicas, a embriaguez e as brigas, o xadrez é um meio poderoso para a elevação do nível cultural geral". Krylenko editou o principal jornal soviético de xadrez, o "64", mantendo controle ideológico sobre a comunidade de xadrez que logo chegou a dezenas de milhões de jogadores. O slogan do partido era: "Levem o xadrez aos trabalhadores!". A popularidade maciça do jogo que foi despertada pelo torneio de Moscou de 1925 está registrada em "A Febre do Xadrez", um agradável filme mudo que não fornece pistas a respeito dos monstros já engendrados pelo sono que tomou conta da razão na Rússia. José Raúl Capablanca, um campeão mundial cubano, apareceu como figurante nessa história de um jovem tão obcecado pelo xadrez que negligenciava a namorada. Os milhões de jovens pioneiros soviéticos do xadrez de cujos quadros emergiu a primeira geração de mestres soviéticos do jogo estavam, de forma similar, distraídos do pesadelo que era a realidade do gulag. Em um Estado no qual a religião era brutalmente suprimida, o xadrez se tornou um dos ópios do povo. A princípio, o xadrez soviético tinha poucos resultados que justificassem os escassos recursos investidos pelo Estado na criação de um elaborado sistema hierárquico. O primeiro torneio de Moscou, em 1925, foi de fato vencido por um russo, Yefim Bogolyubov, que ficou a frente de Lasker e de Capablanca. Mas ele logo se juntou às legiões de imigrantes russos na Alemanha. E o mesmo fez Alexander Alekhine, que sucedeu Capablanca como campeão mundial, mas que jamais retornou à Rússia, vagando pela Europa, fumando e bebendo compulsivamente. Durante a decisão do campeonato de 1935 com o holandês Max Euwe, um confronto que perdeu, Alekhine foi encontrado bêbado em um campo. Dois anos mais tarde ele recuperou o título, não tendo bebido nada, a não ser leite, durante o campeonato. O destino de Alekhine, e dos outros intelectuais do gênero, que deixaram a sua pátria, foi imortalizado no primeiro grande romance de Vladimir Nabokov, "A Defesa Luzhin". Escrito em russo quando o jovem escritor lutava para sobreviver na Berlim da década de 20, o livro conta a história de Luzhin, um gênio do xadrez que vive na fronteira da insanidade, e para quem o mundo fenomenal - o mundo da política, do dinheiro e até mesmo do amor - mal existe. Uma jovem se dispõe a salvar Luzhin daquilo que ela enxerga como a monomania do rapaz, mas ele não sabe ao certo se quer ser salvo. Ele só é capaz de resolver a sua crise existencial por meio do suicídio. Nabokov, ele próprio um grande jogador de xadrez, descreve com perfeição a psicologia do jogo. O título dá uma dica: a defesa Luzhin seria uma abertura de xadrez, mas no livro ela significa o mecanismo profilático atrás do qual Luzhin se refugia. O autor também usa o jogo como uma metáfora da vida intelectual, e o romance é uma elegia para a frágil cultura européia que ele vê desmoronar à sua volta. Luzhin não é um personagem baseado em nenhum indivíduo em particular, mas, além de Alekhine, ele se assemelha a dois outros grandes mestres imigrantes: Aron Nimzowitsch e Akiba Rubinstein, oriundos de famílias judaicas devotas, da Letônia e da Polônia, respectivamente. Ambos jogavam um xadrez de grande originalidade, mas não tinham a tranqüilidade nem a garra para se tornarem campeões mundiais. Os dois eram solitários ascéticos, psicologicamente frágeis e excêntricos. Nimzowitsch fazia exercícios calistênicos durante os seus jogos. Um brilhante escritor, mas completamente absorvido pelo seu próprio universo, ele fez de si o principal teórico da escola hipermoderna com o tratado "O Meu Sistema". Rubinstein, assim como o fictício Luzhin, às vezes pulava pelas janelas se um estranho entrasse na sala. Ele passou os últimos 30 anos da sua vida em um hospício. O primeiro e maior herói do xadrez da União Soviética foi Mikhail Botvinnik. Nascido em 1911, ele pertenceu à primeira geração a chegar à maturidade sob o comunismo, e, assim como vários dos seus contemporâneos, era formado em engenharia - de fato, ele mais tarde deu importantes contribuições à computação soviética. A sua primeira aparição no exterior, no torneio anual de Hastings, em 1934, foi um fracasso. Botvinnik trabalhou no sentido de corrigir suas deficiências, e quando retornou à arena internacional, no torneio de 1936 em Nottingham, ficou em primeiro lugar, juntamente com Capablanca e a frente de Euwe, Alekhine e Lasker - todos campeões ou ex-campeões mundiais. Nenhum jovem soviético fora tão célebre antes. O domínio soviético do xadrez foi estabelecido pela vitória de Botvinnik na partida decisiva do torneio de 1948 em Haia, que incluiu os cinco principais grandes mestres após a morte dos campeões mundiais Alekhine, Lasker e Capablanca. Nunca se dissipou completamente a suspeita de que Paul Keres, um jovem estoniano cujos resultados antes e no decorrer da guerra eram iguais aos de Botvinnik, sofreu pressões das autoridades soviéticas como resultado da sua "colaboração" durante a ocupação nazista. Keres jogou bem contra os seus outros três rivais, mas desmoronou contra Botvinnik, possibilitando que este fosse o novo campeão. No meio do torneio, a liderança soviética entrou em pânico devido à ameaça representada pelo campeão norte-americano, Samuel Reshevsky, que venceu Botvinnik em um ótimo jogo. Botvinnik foi obrigado a se explicar ao comitê central, mas foi capaz de assegurar que poderia vencer. Se o norte-americano, que perdeu o ímpeto na segunda metade do torneio e que terminou em terceiro lugar, tivesse vencido o título, Stalin poderia ter retirado o apoio não só a Botvinnik, mas a toda a infraestrutura do xadrez soviético. Assim como vários grandes mestres anteriores a ele, Botvinnik era judeu, e como muitos outros judeus comunistas com o seu histórico, ele acreditava que o novo Estado socialista colocaria um fim aos pogroms da Rússia czarista. De fato, o xadrez soviético alcançou a supremacia em parte porque os nazistas mataram ou mandaram para o exílio praticamente todos os judeus da Europa Central e Ocidental. Mas embora a maior parte dos maiores mestres de xadrez soviéticos fosse judaica - além de Botvinnik havia David Bronstein, Mikhail Tal, Yefim Geller, Viktor Korchnoi e Garry Kasparov (nascido Weinstein) -, Stalin era anti-semita. Até mesmo na era Brezhnev, os judeus (incluindo numerosos mestres de xadrez) sofreram discriminação e sobre eles pairavam suspeitas de lealdades duplas, especialmente quando os dissidentes judeus exigiram o direito de emigrarem para Israel. Natan Sharansky conseguiu manter-se lúcido na prisão em parte porque jogou de cabeça milhares de partidas de xadrez contra si próprio. Sharansky foi durante um curto período ministro do governo de Ariel Sharon, e, com o seu livro "A Case for Democracy", foi também uma inspiração para o presidente George W. Bush. Mas o fato que o deixa mais orgulhoso foi que, quando o maior de todos os campeões russos, Garry Kasparov, visitou Israel e fez uma demonstração simultânea contra oponentes múltiplos, Sharansky ainda estava suficientemente em forma para derrotá-lo. A experiência de Sharansky faz lembrar uma das melhores histórias já escritas sobre o xadrez: "O Jogo Real", um romance do escritor judeu austríaco Stefan Zweig. Quando a poeira baixou após a guerra, ficou claro que os russos tinham superado em muito os outros países no xadrez. Os Estados Unidos, que, parcialmente graças à imigração judaica da Europa, emergiram como a nação mais poderosa do xadrez na década de 30, ficaram chocados em setembro de 1945 quando, no primeiro torneio importante do pós-guerra entre as novas superpotências, a União Soviética massacrou a equipe norte-americana em uma disputa pelo rádio. No ano seguinte a URSS aniquilou a Inglaterra. Durante as três décadas seguintes, a única concorrência séria aos russos veio dos próprios países satélites, o que conferiu credibilidade à advertência de Khrushchev ao Ocidente capitalista: "Nós vamos enterrá-los". A supremacia comunista possuía uma base ideológica ("teórica") e outra prática. Esperava-se que a "escola de xadrez soviética" elevasse a teoria do jogo, em estratégia e em tática, a um patamar muito mais alto do que teria sido possível na cultura burguesa do Ocidente: "Se uma cultura está em declínio, o xadrez também seguirá ladeira abaixo", escreveu Botvinnik. Havia um traço nacionalista nessa ideologia: as aberturas foram rebatizadas com nomes de mestres russos, e os mestres estrangeiros foram caluniados ou removidos da história oficial. Mas a base real da escola soviética era a sua colossal infraestrutura, que criou um exército de milhões de jogadores. Conforme a grande campanha soviética de treinamento dava frutos, e literalmente centenas de jogadores atingiam o nível de mestre ou grande mestre entre os anos 40 e 60, um vasto sistema de recompensas e punições foi construído, repleto de brigas e denúncias intermináveis. A vida de um profissional do xadrez era privilegiada: os estipêndios eram bem mais altos do que os salários médios do cidadão comum, e as viagens ao exterior eram permitidas. Botvinnik e o seu sucessor Vassily Smyslov receberam a Ordem de Lênin, a maior honra civil soviética - enquanto que nenhum enxadrista profissional britânico chegou a ser sagrado cavaleiro. Mas a pressão para se conformar ao sistema era intolerável para alguns, e um fluxo constante de enxadristas refugiados seguiu para o Ocidente. O mais famoso deles foi Viktor Korchnoi, que disputou o campeonato mundial por duas vezes, em 1978 e em 1981 com Anatoly Karpov. Korchnoi, agora um cidadão suíço, alegou que os seus oponentes soviéticos usaram truques sujos para derrotá-lo. Embora Korchnoi tenha perdido ambos os torneios, ele ainda joga um xadrez no nível mais elevado, mesmo tendo mais de 70 anos de idade. Boris Spassky também partiu para um exílio voluntário na França, após a sua derrota para Bobby Fisher. Um outro dissidente foi o grande mestre tcheco Ludek Pachman, que foi preso devido à sua participação na Primavera de Praga em 1968. Esse marxista que se tornou anticomunista quase morreu no sótão de torturas para o qual foi arrastado no meio da noite. A fim de tentar escapar de mais torturas, tentou se matar, e disseram a sua mulher que ele não sobreviveria. Lembro-me de ter jogado contra ele em uma partida simultânea contra 20 outros enxadristas, em 1972, logo após Pachman ter recebido permissão para partir para o exílio. Pachman acabou perdendo para mim um daqueles jogos duramente disputados, mas foi elegante ao elogiar o adolescente tolo à sua frente. Ele parecia bem mais velho do que os seus 48 anos: sob uma nobre testa convexa, a sua face trazia as marcas inconfundíveis dos tormentos mentais e físicos a que foi submetido. Assim como o xadrez refletiu a Guerra Fria, ela também marcou a queda do comunismo. Em 1972, Bobby Fischer, o jovem prodígio norte-americano, se tornou o primeiro ocidental a desafiar um campeão mundial soviético, Boris Spassky. O confronto ocorreu em Reykjavik (assim como os seus ancestrais vikings, os islandeses são fanáticos pelo xadrez). A história daquele enfrentamento extraordinário foi contada diversas vezes: como as demandas de Fischer fizeram com que o evento quase fosse abortado antes mesmo de começar; como Henry Kissinger telefonou para Fischer - "Este é o pior jogador do mundo ligando para o melhor jogador do mundo" - a fim de persuadi-lo a jogar; como o capitalista britânico Jim Slater dobrou o valor do prêmio: como Fischer finalmente apareceu, perdeu o primeiro jogo, desistiu no segundo, deixando todo mundo na expectativa, venceu o terceiro (a primeira vez na vida que ele venceu Spassky), e daí para frente avançou sem olhar para trás. Em retrospecto, fica claro que a détente já tinha amaciado a Guerra Fria, e que as novas tecnologias eletrônicas, civis e militares, que estavam começando a transformar o Ocidente, já haviam condenado o comunismo. Àquela época, porém, isso ainda não era óbvio, e a vitória de Fischer sobre Spassky foi um golpe psicológico. O próprio Fischer viu o jogo como "o mundo livre contra o russo mentiroso, trapaceiro e hipócrita... Me deu grande prazer como uma pessoa livre ter esmagado essa coisa". A União Soviética continua dominando o xadrez ocidental postumamente, já que a maior parte dos principais grandes mestres nos Estados Unidos, Israel, Holanda ou Alemanha é composta atualmente por imigrantes do ex-bloco oriental. Mas o grande mestre que reinou durante a fase final da real hegemonia soviética foi Garry Kasparov. Nascido em Baku, no Azerbaijão, de uma família judaica Armênia, Kasparov foi ao mesmo tempo o último campeão mundial soviético, e o primeiro campeão mundial pós-soviético. Nem o velho Botvinnik, que o treinou, nem o sucessor de Botvinnik, Anatoly Karpov, nem o sistema ao qual eles serviram tão lealmente poderiam restringir esse impetuoso e jovem gênio. A sua primeira disputa pelo campeonato mundial contra Karpov, em 1984, foi cancelada após cinco meses e 48 jogos - todos eles, com exceção de oito, empates - pelo presidente da Federação Mundial de Xadrez, Florencio Campomanes, que alegou que os jogadores estavam exaustos. Isso deixou Karpov de posse do título - o resultado desejado pelo Kremlin. Depois disso Kasparov se preparou não só para esmagar Karpov, mas para abrir o sistema soviético. Tendo vencido o campeonato mundial em 1985, Kasparov se recusou a obedecer às autoridades soviéticas. Embora tenha dedicado a sua autobiografia a Gorbachev, quando a União Soviética desmoronou em 1991 ele era abertamente anticomunista. Kasparov dominou o mundo do xadrez por cerca de 20 anos, até a sua aposentadoria em março deste ano, e agora se uniu à crescente oposição política ao presidente Putin. O recorde de Kasparov no xadrez eclipsa todos os outros, mas foi a sua (totalmente desnecessária) derrota para o computador Deep Blue em maio de 1997 que deixou a marca mais profunda. Muitos assumiram que o xadrez seria agora um jogo "resolvido", ainda que grandes mestres continuassem a derrotar até mesmo os melhores computadores. Foi a Guerra Fria que originalmente estimulou o desenvolvimento de máquinas jogadoras de xadrez, cuja concepção teve como pioneiros o britânico Alan Turing e o norte-americano Claude Shannon, no final dos anos 40. As duas superpotências utilizaram programas de xadrez para simular conflitos nucleares, e não foi acidente o fato de o primeiro campeonato de computadores ter sido vencido por máquinas soviéticas e norte-americanas. Em meados dos anos 70, a superioridade ocidental nesta e em outras áreas da cibernética era nítida. Desde a Guerra Fria o xadrez tem gozado de uma maior liberdade mas de um prestígio menor. Quando Kasparov foi desafiado em Londres pelo grande mestre britânico Nigel Short, em 1993, não havia nenhum daquele simbolismo que acompanhou a disputa entre Fischer e Spassky, e quando Kasparov finalmente perdeu o seu título para um russo menos exuberante, Vladimir Kramnik, a disputa (também em Londres) só atraiu interesse no universo do xadrez. A ascensão e a queda do xadrez como uma metáfora política e uma arma ideológica coincidiram com um dos capítulos mais sombrios da história da humanidade. Mas, destituído da atmosfera de ameaça que era um subproduto da Guerra Fria, o xadrez dissipou grande parte do capital que acumulou no decorrer do século passado. Como um esporte para espectadores, ele não é capaz de satisfazer um público acostumado a entretenimentos rápidos e que não exigem muito sob o ponto de vista intelectual. Obstáculos artificiais à competição global foram abolidos, mas a Fide, a organização internacional do jogo, está em pandarecos, controlada e subsidiada por Kirsan Ilyumzhinov, o ditador de uma pequena província russa chamada Kalmykia. O único outro fato digno de nota na vida de Ilyumzhinov foi o seu relacionamento estreito com Saddam Hussein. Ele estava a bordo do último avião que deixou Bagdá antes que a coalizão liderada pelos norte-americanos invadisse o Iraque. Apesar da excentricidade da instituição que o controla, o xadrez está florescendo em todo o mundo em desenvolvimento, especialmente nas potências emergentes que são a Índia e a China. Na Europa e nos Estados Unidos ele está mais popular do que nunca, principalmente em escolas, mas luta para conseguir o reconhecimento público do qual desfrutam outros esportes. Após o fim da Guerra Fria, o xadrez foi privatizado, e embora ele ainda não tenha atraído o interesse de bilionários russos, o jogo foi um dos grandes beneficiários da revolução da Internet. Assim que foi combinado àquela instituição tão inglesa, o clube, o xadrez se tornou uma das grandes forças socializadoras, um equalizador de classe, raça, gênero e geração. Ele não exige infraestrutura: apenas umas poucas peças de madeira ou plástico. Tanta coisa é devida por tanta gente ao xadrez que o jogo pode ser visto como um microcosmo das nossas realizações, como o nosso companheiro constante através das eras. Se tudo o que restasse da humanidade fosse o jogo de xadrez, os alienígenas nos conheceriam por aquilo que somos: não apenas o Homo sapiens, mas também o Homo ludens.


*Daniel Johnson é um comentarista freelance de cultura e política. Ele está escrevendo um livro sobre o xadrez e a Guerra Fria.

3 comentários:

Unknown disse...

pooo...interessante ...não sabia disso...tipoooo as dos 10 motivos...tem vario interessantes...mal de ... sei la oque...então não corremos riscoo...kkkkkkkkkkkkkk

Unknown disse...

Belíssimo artigo! Nele há o casamento entre História e xadrez, fantástico!
Parabéns ao CLX pela pesquisa.

Renato Tavares disse...

porra que texto grande