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segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Mikhail Thal: O Mago de Riga



Em meados de 1860, a magnífica poetisa norte-americana, Emily Dickinson, escreveu: "O sucesso é mais doce\ A quem nunca sucede.\ A compreensão do néctar\ Requer severa sede.\Ninguém da Hoste ignara\ Que hoje desfila em Glória\ Pode entender a clara Derrota da Vitória\ Como esse- moribundo-\ Em cujo ouvido o escasso\Eco oco do triunfo\ Passa como um fracasso!\"
Sem dúvida, uma notável análise do real significado do sucesso na vida, diante do implacável adversário chamado tempo.
No universo do xadrez, onde uma guerra surda de egos predomina, raros são aqueles que encaram a vitória ou a derrota com indiferença dentro da sábia visão de Emily Dickinson. Dos maiores enxadristas de todos tempos, pode-se dizer que apenas Mikhail Tal, “O mago de Riga” ou ainda “O mago dos magos”, pode atingir tão profunda perspectiva! Caso usemos a analogia das “Vidas Paralelas”, de Plutarco, Tal teria Mozart o correspondente na música, na pintura Leonardo e na religião estaria para São Francisco de Assis. A lógica enxadrística de Tal, nas palavras de um admirador, era a “lógica dos deuses”. Ninguém elevou mais o xadrez a categoria de arte do que ele.
No torneio de candidatos de 1959 que se celebrou em Bled, Zagreb e Belgrado, com todos os jogadores enfrentando-se entre si quatro vezes, Tal ocupou o primeiro lugar com 20/28 pontos diante de Keres, Petrosian, Smyslov, Gligoric, Fischer, Olafsson e Benko. Ganhou as quatro partidas contra Bobby Fischer. Contra Smyslov que tinha se referido ao seu jogo, após ter ganhado a primeira partida, como um “conjunto de truques”, Tal jogou uma segunda partida sacrificial que na opinião de alguns comentaristas primou por uma extrema ferocidade. Smyslov foi batido na Caro-Kan, em apenas 25 lances, desestruturando-o completamente para as partidas seguintes. Mikhail Tal estava pronto, então, para enfrentar a lenda Botvnnik pelo cetro do xadrez em 1960 (Match 1960).
Na famosa sexta partida do match de 1960 pelo título mundial, Botvinnik, jogando com as brancas (!), foi confrontado com um inesperado e surpreendente sacrifício de cavalo após os movimentos da abertura. As testemunhas privilegiadas puderam presenciar o desagrado e o desconforto de Botvinnik, legendário oponente de Lasker, Alekhine e Capablanca e fiel apóstolo do xadrez expresso por uma lógica fria e algorítmica. De início ficou visível para os presentes a incredulidade do campeão diante do inusitado sacrifício. Em seguida, Botvinnik pensou longamente os planos de refutação. Tudo em vão. Botvinnik tinha poucos minutos disponíveis em seu relógio quando o árbitro sueco Stahlberg determinou o adiamento da partida, vencida de forma categórica por Tal, no recomeço.
Na sétima partida ficou claro que Botvinnik tinha perdido o seu caminho nas complicações colocadas pelo seu adversário. Jogando com as pretas, plantou a sólida defesa Caro-Kan e de acordo, com Clarke, “não sem um esforço super-humano”, conseguiu obter vantagem. Tal respondeu com um ataque desesperado, mas a posição das negras se revelou sólida. Na seqüência Botvinnik ganhou um peão e logo depois outro, tornando a posição de Tal insustentável. Certamente este jogo seria vencido pelo campeão. No entanto, depois de grande esforço, Botvnnik se viu diante da premência de tempo e cometeu um “leve equívoco”, recebendo de pronto um surpreendente sacrifício de torre. A sua partida fora comprometida por um único erro. Em 7 de maio de 1960, no teatro Puchkin, em Moscou, na última partida do match, Tal aceitou o oferecimento de empate do seu adversário, tornando-se campeão mundial.
Na conferência de imprensa que se seguiu, quando se perguntou a Tal qual fora o seu método de preparação para aquele match, ele respondera para a surpresa de todos: “Evitei jogar xadrez por um longo tempo para manter o meu apetite enxadrístico para este match”!
Nem Botvinnik e praticamente todos os grandes-mestres da sua época puderam entender o segredo do triunfo de Tal. Quando ele jogava, escrevera alguém, “era fácil relembrar da música de Mozart”. Os seus sacrifícios foram considerados por vários grandes mestres de “irracional”. Outros denominavam de “demoníacos”. Existia ainda um público seleto que acreditava que Tal tinha poderes hipnóticos!
No campeonato da URSS, em 1964, em Kiev, jogando com o mestre Eugenio Vasiokov, nós temos nas palavras do próprio Tal, um vislumbre do seu esplêndido pensamento criativo: “A posição no tabuleiro era muito complexa e eu pensava em sacrificar um cavalo. Não era uma variante muito clara, uma vez que existiam muitas possibilidades. Comecei a calcular e me horrorizei diante da idéia de que o sacrifício fora falso. As idéias me amontoaram na cabeça: uma resposta correta do inimigo em determinada situação levava a outra variante e nesta o sacrifício era inadequado por completo.O concreto foi que na minha cabeça se formou uma montanha caótica de movimentos, às vezes sem nenhuma relação entre si e a “árvore da análise”, tão recomendada pelos treinadores, começou a crescer de forma monstruosa. Não sei porque, mas nesse momento recordei da célebre poesia infantil de Chukovski: “Oh, que difícil é o trabalho/ De retirar um hipopótamo de um pântano”! Eu não podia explicar porque este hipopótamo se meteu no tabuleiro! Enquanto os espectadores julgavam que eu estava analisando a posição, eu pensava como demônios(!) poderia sacar um hipopótamo de um pântano! Recordo que na minha cabeça se juntaram ao hipopótamo outras imagens: uma alavanca, helicóptero e inclusive uma escada de cordas! Depois de numerosas tentativas, não encontrei nenhum método aceitável para retirar o hipopótamo do pântano e pensei com amargura: pois que se afogue!!Imediatamente o hipopótamo desapareceu do tabuleiro e a posição não resultou ser tão complexa como parecia nos meus cálculos. Neste instante eu me dei conta de que não poderia calcular todas as variantes e que o sacrifício do cavalo era um movimento puramente intuitivo.Como prometia um jogo interessante, naturalmente não me neguei a ele! No dia seguinte, leio na imprensa que Mikhail Tal depois de estudar por quarenta minutos a posição, acertadamente, sacrificou um cavalo!"
Tal não pensava como os outros mortais. Korchnoi tinha dito: “embora a intuição e o cálculo sejam muito importantes, penso que a objetividade é a coisa mais importante para o enxadrista”. Botvinnik afirmara: “o xadrez é arte que ilustra a beleza da lógica”! Tal dissera: "Há dois tipos de sacrifícios: os corretos e os meus". E ainda: Cada partida é um desafio criativo”! "O valor de cada peça depende da posição como um todo"!!
Ele mesmo depois de ter conseguido o título mundial, com 23 anos de idade, não deixava de comparecer ao torneio anual de blitz, no Sokolniki Park de Moscou.
Acima de tudo Tal amava o jogo em si mesmo e considerava que o “Xadrez, antes de mais nada, é Arte.” Era capaz de jogar numerosos jogos blitz contra desconhecidos ou jogadores relativamente fracos apenas pelo prazer de jogar!
No match de revanche, em 1961, ele foi acometido de uma doença crônica nos rins que o atormentaria durante toda a sua vida, levando-o à morte em 1992, com 56 anos de idade. Botvinnik, no entanto, não se manifestou em momento algum sobre o adiamento do match devido aos problemas de saúde do seu adversário. Quando perdeu o título, Tal enviou um telegrama a Botvinnik: “eu desejo que o pequeno Misha (diminuitivo de Mikhail, referindo-se à Botvinnik) siga os passos do grande Misha”! Tal sempre foi democrático. As autoridades o humilhavam. Em 1970 ele foi proibido de jogar no campeonato da URSS, na sua cidade natal de Riga!Muitas vezes os burocratas do regime o obrigavam a assinar papéis no qual ele se comprometia a tirar o primeiro lugar em torneios considerados importantes pelo Estado Soviético.
Em 1979, ele alcançou o primeiro lugar com Anatoly Karpov no “Torneio das Estrelas” em Montreal. Em 1988, aos 52 anos ele ganhou o Campeonato Mundial de Xadrez Relâmpago, em San Juan, Canadá. Dos 32 jogadores que participaram estavam Kasparov e Karpov. Tal ganhou 50 mil dólares pelo título deste torneio.Vale a pena citar que ele jogou este torneio embriagado. Poucos jogadores tiveram um escore positivo contra ele. A predominância de Tal sobre Fischer é lendária.Smilosv tinha dito que o jogo de Tal era um “conjunto de truques”.No entanto, Tal venceu convincentemente todos os grandes mestres da época(Korchnoi é uma notável exceção) e os seus fulminantes e inesperados sacrifícios criavam situações extremamente complexas no tabuleiro e difíceis de se resolverem, mesmo para os maiores grandes-mestres. Em 1987 num supertorneio em Bruxelas, aonde jogava junto a Kasparov, Karpov e Korchnoi, ao visitar a sala de imprensa, Tal viu várias pessoas que se debruçavam diante de um problema posto pelo grande-mestre Jim Plasket. Ao se acercar da mesa, falaram para ele que Kasparov e Karpov, além de vários outros mestres, tinham analisado a posição sem poderem demonstrar a solução. O problema estava irresolvido há quase dois dias. Tal analisou a posição por 10 minutos e foi dar um passeio num parque. Uma hora depois entregou a solução na sala de imprensa. Ele tinha resolvido o problema durante o passeio. Ver diagrama abaixo. Brancas jogam e ganham.
Firmeza de Alma é conservar a razão nos momentos de crise, definiu o filósofo Spinoza e nenhum jogador poderia espelhar melhor essa definição do que ele. Com Tal, recomendavam os treinadores dos outros mestres, não se deve aceitar empate depois de quatro horas de jogo. Uma referência ao seu problema de rim que o cansava depois desse período (certa vez, ele foi retirado às pressas, da mesa do jogo para uma sala de operações). Em resposta ele lembrava a frase de Mark Twain: "As notícias sobre a minha morte estão algo exageradas"! As suas maravilhosas combinações, difíceis de serem apreendidas, mesmo por mestres de grande porte, são excedidas, contudo, pelo seu brilhantismo pessoal. Lev Khariton resumiu a sua vida”: Gênios são pessoas especiais. Tal, eu penso, estava muito à frente do seu tempo. Ele fez do risco e da intuição as principais forças a guiá-lo no tabuleiro. Todos os grandes jogadores de xadrez, que lhe seguiram, têm um débito com ele. Sua herança é parte da cultura humana! O seu legado permanece inexplorado e esperando por um aprofundamento e pesquisa sistemática. Grande e simples vida! Caso usemos os estágios bíblicos pelo qual o ser humano pode ser julgado: a cólera, o número de amigos e o amor ao dinheiro, teremos uma idéia do homem: ninguém nunca o viu colérico; os seus amigos foram mais do que numerosos e ele nunca teve qualquer amor pelo dinheiro! Acrescente-se a isto a sua criativa inspiração”. Hélder Câmara, numa página intitulada “Tal, Adeus”, sobre a morte do enxadrista, diz: "Mikhail Tal era um desses raríssimos homens a quem Deus negou o elementar e primitivo direito de ser mesquinho. Vez em quando, ele perdia ou empatava com um principiante, apenas para fazê-lo feliz ou para que ninguém desconfiasse de sua condição sobre-humana”. Não se pode pedir mais.

Nota 1: Acesse 85 posições decisivas de Mikhail Tal em: http://www.wtharvey.com/tal.html
Nota 2: Deep Junior sagrado recentemente o campeão mundial dos computadores (vários processadores permitem uma capacidade de cálculo de 500 milhões de posições por segundo), na capital da república russa de Kalmikia, batendo Deep Fritz, teve a sua força justificada pelos criadores israelenses, Amir Ban e Shay Bushinski , exatamente à “cópia” do estilo de Mikhail Tal!!
Fonte: CCX (Clube Conquistense de Xadrez)

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