Uma antiga lenda, conhecida pelos mais antigos povos do oriente, conta a história de Sarahuan, um pequeno príncipe que, ainda bebê, perdeu seus pais, aos dois anos de idade. O castelo de sua família foi invadido pelos lákmidas que dizimaram vilas e pequenas cidades localizadas desde a Fenícia até a Palestina.
Antes do ataque, a região vivia em paz há quase duzentos anos. A riqueza acumulada pela família de Sarahuan, ao longo do tempo, não a afastava de seus súditos; ao contrário, o Rei Sara Al-Faraq, pai de Sarahuan, era muito respeitado e querido pelo cidadãos.
A população hassânida, que habitava aquela localidade, realmente gostava da maneira com que o Rei conduzia os assuntos que diziam respeito a eles. Havia muito comércio e intercâmbio intensos entre os povos.
Esse paraíso, contudo, atraía a atenção de outras nações. Mas a invasão promovida pelos lákmidas, um povo que vivia mais próximo à Pérsia, teve uma motivação adicional: o boato de que o castelo de Faraq abrigava um salão completamente cheio de jóias e ouro. Alguns juravam que no local caberia toda a água do rio Eufrates e que estaria num subsolo, cuja área seria a mesma do próprio castelo na superfície; ambos protegidos pelos imensos muros de quatro metros de espessura, doze de altura e – diziam - sete de profundidade.
O fato é que quando as tropas invasoras dominaram o castelo acabaram por encontrar, no grande salão subterrâneo, os pais de Sarahuan, donos de imensa fortuna. Ambos foram torturados até a morte.
Os lákmidas mataram todos os membros da família real e usaram o salão subterrâneo como tumba. Após amaldiçoar a alma de todos eles, lacraram o salão e convocaram os deuses para que executassem qualquer um que tentasse entrar ali.
Enquanto isso, o pequeno príncipe Sarahuan estava em segurança longe dali. Dias antes da invasão, o Rei Faraq deixara a criança aos cuidados de seu mais leal guerreiro, com instrução expressa para se dirigir à cidade de Uegih e lá permanecer.
O Rei providenciou soldados, cavalos, mantimentos e algumas damas para cuidar do bebê. A maior parte da carga, aliás, pertencia ao menino. Nada muito luxuoso, pelo contrário, havia apenas o mínimo necessário para o conforto do recém-nascido; além de um pequeno baú lacrado com o selo real. As instruções diziam que ele só deveria ser aberto pelo próprio Sarahuan quando completasse 8 anos de idade.
Aquela criança viveu uma infância complicada. O exílio exigia cuidados constantes com a segurança e à proporção que os anos passavam, o isolamento tornava-se mais e mais impiedoso. Quando Sarahuan completou 8 anos de idade, as terras hassânidas ainda estavam ocupadas por tropas lákmidas e a sua verdadeira identidade ainda era uma sentença de morte na região. Por essa razão, seu aniversário foi comemorado quase em segredo.
O pequeno príncipe deveria ficar sabendo que, a partir daquele dia, ele se tornaria Rei dos Hassânidas. A cerimônia, apesar de simples e discreta, cumpriu todos os rituais ditados pela tradição e culminou com a abertura do baú pelo próprio, agora Rei, Sarahuan Al-Faraq.
O baú continha apenas papéis. Eram documentos onde estavam registrados os direitos herdados pelo pequeno Sarahuan, as extensões do reino, as tradições, dados sobre a própria família, mensagens dos pais e parentes mais próximos e, o mais curioso, as regras do jogo de Xadrez.
Quando o pequeno Sarahuan fechou novamente o baú, o fiel guerreiro de seu pai, Hamat, entregou-lhe um envelope também lacrado pelo selo real. O envelope foi aberto e nele estava escrito:
"Meu filho, que Allah esteja contigo, grande Rei Sarahuan Al-Faraq. Hoje você se tornou Rei de uma nação que já foi a maior sobre a Terra. A dominação lákmida deverá ser combatida e você é a única pessoa capaz de expulsar os invasores de nossas terras e devolver ao nosso povo a paz na qual sempre estiveram acostumados a viver. Comece por onde tudo terminou."
- O que significa isso, Hamat? - perguntou o menino ainda sem entender bem tudo o que estava acontecendo.
- Majestade...
- Majestade? - o pequeno rei foi pego de surpresa. Hamat, seu companheiro e único amigo de confiança, nunca o havia chamado de "majestade" antes. Toda aquela cerimônia deixou o pequeno Sarahuan um pouco assustado. Intrigado, ele perguntou em tom sério... - Eu não sou mais Sarahuan?
- Claro que sim... majestade... mas agora o pequeno Sarahuan é um grande Rei. Sou seu escravo e fiel escudeiro. Exatamente como fui de seu pai.
- As damas e carregadores são escravos. Você não! Você é meu súdito e fiel guerreiro! Será o único com permissão de me chamar pelo nome, já que não tenho família... Caso contrário, vou acabar esquecendo meu próprio nome.
- Está bem, Sarahuan. Seu desejo é uma ordem. Estou muito honrado...
- Não comece de novo. Como meu pai acha que eu serei capaz de expulsar um exército inteiro das terras que eram nossas? Pelo que entendi, elas vão até a Palestina...
- Você ainda é muito jovem. Tudo virá a seu tempo.
Durante um longo período o pequeno Rei pensou que o Xadrez havia sido inventado por seu pai. Aquelas folhas com as regras do jogo, entre todos aqueles documentos, eram a única coisa que o fazia lembrar de seu pai como uma pessoa amiga e não como um Rei ou um ‘‘deus’’. Fez questão de aprender a jogar e a ensinar a todos que o cercavam. Como não podia deixar de ser, tornou-se um grande jogador e, sem dúvida, era o melhor da aldeia onde viviam.
Os anos se passaram, Sarahuan cresceu e amadureceu. Descobriu que muitos povos ainda respeitavam seu pai como a um "deus’’ e constatou que não lhe faltaria ajuda se um dia viesse a usar as armas contra o exército lákmida. Mas lhe faltavam recursos..." Uma empreitada desse porte exigia muita organização e os gastos seriam enormes.
- Não sei nem como começar, Hamat. O que podemos fazer?
- Devemos seguir o conselho de seu pai: começar por onde tudo terminou.
- Quer dizer que teremos de voltar ao castelo? Eu soube que ele está em ruínas e o salão subterrâneo está lacrado até hoje.
- O local está abandonado, alteza... eu mesmo verifiquei. O medo da punição dos deuses e a possibilidade de encontrar os fantasmas de seus pais manteve o salão intacto até hoje. Mas eu creio que os deuses não se atreverão a punir o grande Rei Sarahuan Al-Faraq.
- Você está sendo irônico... quer que eu acredite que você não tem medo de ir lá e desafiar o poder dos deuses?
- Ao seu lado eu não terei medo de nada...
- Então vamos, Hamat. Se os deuses estiverem lá, meus pais também estarão para nos ajudar.
Sarahuan e Hamat, após três dias a cavalo, chegaram às ruínas do castelo e começaram a procurar a entrada do salão. Hamat localizou a entrada sob várias pedras que foram removidas com a ajuda dos cavalos.
- Conseguimos, alteza! Vamos acender as lanternas e ver o que tem lá embaixo.
O acesso aos salões era um túnel em direção ao subsolo. Quando desceram as escadas, Sarahuan estava nervoso e com medo; mas, mesmo assim, fez questão de ir na frente. A sensação era a de que os deuses estavam observando e aguardando o momento certo para a execução sumária. A escuridão não permitia Sarahuan perceber a imensidão do salão apesar da tentativa de Hamat apresentar-lhe o local.
- Seus pais costumavam ficar ali. Eles gostavam de jogar Xadrez e ficavam horas desfrutando do silêncio e da tranqüilidade daqui.
- Hamat, você conheceu bem meus pais, não ?
- Oh, sim. Eu tive a honra e a felicidade de freqüentar o castelo desde que nasci. Meus pais serviram seus avós... eu também considerava esse castelo como sendo meu próprio lar.
- Eu sou mais parecido com minha mãe ou com meu pai?
- Você é a cara de seu pai e joga xadrez tão bem quanto sua mãe. Ela era muito inteligente. Seu pai sabia disso e nunca ignorava seus conselhos.
- Desculpe-me, Hamat... eu já lhe perguntei isso centenas de vezes...
- Não se desculpe. Fico feliz de ter sabido lhe ensinar tudo que seu pai representava. Todos nós o amávamos.
- Não consigo entender como puderam ter coragem de matá-los...
- Eles foram mortos pela cobiça, Sarahuan...a cobiça dos homens. Vieram atrás de riquezas, mas só o seu pai entendia que a maior riqueza de um homem é a sua liberdade.
- Riquezas... e o tesouro? Ele existia mesmo?
- Claro que sim, Sarahuan. Mas ele não ocupava todo o salão. Ele costumava ficar naquela outra sala ali atrás. Mas foi removido para um lugar seguro poucos dias antes da invasão.
- E para onde levaram?
- Seu pai era muito metódico. Minha responsabilidade era cuidar de você. Quanto ao tesouro, outra pessoa de confiança de seu pai deve ter recebido a tarefa de guardá-lo.
- Pelo visto meu pai não confiava tanto assim em você...
- Pelo contrário, Sarahuan. Você era o maior tesouro de seu pai. Tive muito orgulho de ser o escolhido por ele.
- Está bem, Hamat. Mas meu pai quis que voltássemos aqui. Pensei que iria encontrar ossos ou talvez uma mensagem... mas parece que já limparam tudo aqui. Não vejo nada.
- Seus pais não foram mortos aqui como diz a lenda. Ela serviu apenas para afastar os curiosos. Eles foram levados para Riad e executados lá por se recusarem a dizer onde estava o tesouro. O salão foi lacrado, pois os lákmidas desconfiavam de que haveria mais algum compartimento secreto, que não foi possível encontrar, e não queriam que aventureiros, mais tarde, tivessem mais sorte que eles.
- E há algum compartimento secreto?
- Claro que sim. Mas, pelo que vejo, quase todos foram descobertos.
- Quase? Quer dizer que tem algum ainda intacto?
- Sim. Ele foi lacrado pelo seu pai. Precisaremos trazer os cavalos aqui para baixo.
- Então vamos logo! O tesouro deve estar lá!
As pedras iam sendo removidas uma a uma. As maiores precisaram ser quebradas e, por isso, o trabalho levou alguns dias. Entretanto, finalmente, restava apenas a porta original do compartimento.
- Proteja seus olhos, Hamat, ou o brilho das jóias irá cegá-lo...
- Não tenha tantas esperanças, Sarahuan. Neste compartimento que vamos abrir, mal cabem duas pessoas e, mesmo assim, não creio que parte do tesouro tenha ficado aí.
A porta se abriu e o único brilho que se via era o das lanternas já quase sem combustível que eles próprios carregavam. O compartimento estava vazio.
- Não há nada aqui, Sarahuan. Apenas um jogo esquecido de Xadrez.
- Sim Hamat - e Sarahuan olhava fixamente para a mesa - o tabuleiro é todo feito em pedras preciosas... veja as peças... todas em ouro... Isso deve valer uma fortuna.
- Com certeza, Sarahuan. Mas nem se compara com o tesouro que a sua família tinha.
- Olhe só, as peças parecem que ainda estão na posição de alguma partida interrompida. Talvez a última partida que meus pais jogaram...
- É possível... Se bem que eles não costumavam jogar aqui, mas, em todo caso, pode até ser.
Sarahuan olhava fixamente para o tabuleiro com uma cara cada vez mais intrigada...
- Hamat, procure por aí uma torre branca... pois não a vejo em lugar algum...
- Aqui no chão tem uma torre branca.
- Sim, mas deveria haver duas. Todas as peças estão aqui exceto uma torre branca.
- Pode ter se perdido. Aqui não está. Ou talvez tenham levado junto com o tesouro. Na pressa...
Sarahuan fez uma cara de quem viu um fantasma (talvez o do próprio pai) e, em seguida, abriu um largo sorriso e deixou seu amigo sem entender nada.
- Talvez você tenha razão, Hamat! Se a torre não está aqui, ela pode estar junto com o resto do tesouro.
- Mas que diferença faz, Sarahuan? Não sabemos onde está o tesouro...
- Por isso é que viemos aqui, Hamat. Para encontrar pistas que nos levem até o tesouro. E eu acho que você encontrou a nossa pista.
- Não estou entendendo, Sarahuan... Talvez haja alguma mensagem embaixo do tabuleiro. Deixe-me virá-lo...
- Não! Não mexa em nada, Hamat! Deixe tudo como está! Não toque em absolutamente nada!
- Calma, Sarahuan! - Hamat deu um pulo para trás - Calma! O que está havendo? Você viu algum escorpião ou uma fera? Não estou vendo nada.
- Não há nenhuma cascavel, Hamat!
Sarahuan olhava fixamente para o tabuleiro. Hamat estava assustado pois seu mestre parecia estar hipnotizado.
- Você está bem, Sarahuan? O que houve? Você encontrou a torre?
- Sim, Hamat! Encontrei! Quero dizer, eu sei onde ela está! Temos de ir imediatamente para Qimahjaeth! Vamos! Mexa-se! Traga os cavalos! Rápido!
No minuto seguinte, os dois já estavam seguindo na direção da cidade de Qimahjaeth. Na verdade não chegava a ser uma cidade mas, sim, uma aldeia. Ela surgiu, assim como muitas outras, como um simples posto de reabastecimento e troca de cavalos a serviço do Correio Real.
Os correios eram o símbolo da integração dos povos da região e as longas distâncias, através do deserto, eram vencidas rapidamente pelo engenhoso método no qual, a cada 80 ou 100 quilômetros, os mensageiros recebiam um cavalo descansado para prosseguir na viagem.
No início os postos se resumiam a uma torre de observação, que também servia de abrigo aos cavalos e tratadores, e um poço d’água. Com o passar do tempo, os postos se tornaram aldeias, depois vilas e até, em alguns casos, cidades. Uma linha imaginária que unisse esses postos seria chamada de rota e, na verdade, havia duas rotas principais: a que ligava os povos do sul ao castelo era chamada de Rota dos Cavalos da Rainha, e a que ligava os povos do norte era conhecida como a Rota dos Cavalos do Rei. Qimahjaeth ficava ao sul e, portanto, fazia parte da Rota dos Cavalos da Rainha. Na época em que os correios estavam em atividade, Tiseh era o primeiro posto ao sul e Qimahjaeth, o segundo.
- O que vamos fazer em Qimahjaeth, Sarahuan? Pode me dizer?
- Vamos recuperar nosso tesouro! Ele está lá. Eu tenho certeza.
- Não há nada lá. Aquilo é uma pequena aldeia miserável. Nem Allah está entre eles. Eles acreditam nos deuses mais esquisitos que já vi. Enganam os crédulos e roubam dinheiro dos que passam por lá. É um amontoado de tendas repletas de esquisitices.
- Calma, Hamat, estou apenas seguindo as orientações deixadas por meu pai. Ele disse que o tesouro está lá.
- Falou com seu pai? Poderíamos ganhar muito dinheiro montando uma tendinha em Qimahjaeth. Se acreditarem que falamos com os mortos poderemos conseguir todo o dinheiro que precisamos. É assim que pretende recuperar o tesouro?
- Claro que não, Hamat. E não gosto que faça brincadeiras com meu pai. Nós temos que encontrar o guardião do tesouro. O homem de confiança dele. E ele está em Qimahjaeth.
- Não tive a intenção de zombar... Você entenderá quando chegarmos lá. Tome cuidado com qualquer coisa que lhe oferecerem. Não acredite em nada que disserem. Caso contrário, levarão todo seu dinheiro.
- Não se preocupe, Hamat. Não sou mais uma criança...
Ao chegarem na aldeia, o sol estava bem no alto do céu. Os cavalos já estavam exaustos e o calor era enorme. Hamat queria encontrar algo para comer e não podia imaginar como iria conseguir isso em meio àquele formigueiro humano - passando pra lá e pra cá por entre as tendas. Os gritos vinham de todos os lados: "Tapetes! Tapetes! Só cinco moedas! Troco por tabaco! Tapetes! Camelos! Temos Camelos importados!".
- Eu também estou com fome, Hamat. Precisamos comer algo.
O apelo de Sarahuan pareceu ser ouvido por Allah. No minuto seguinte, um homem pequeno e de barba longa aproximou-se deles oferecendo alimentos.
- Minha tenda tem comida. Minha cozinheira é a melhor de toda a região. Por duas moedas vocês poderão comer o que quiserem. Tenho tudo que possam imaginar. Eu os desafio a pedir algo que eu não tenha. Se conseguirem, não pagarão pela comida.
- Duas moedas?! Está vendo, Sarahuan? São ladrões! Vamos procurar outro lugar.
- Espere aí, Hamat. O dono da tenda nos desafiou. Vamos pedir algo que ele não tenha. Assim, nada pagaremos. Vamos mostrar-lhes quem é o mais esperto por aqui.
- Esqueça, Sarahuan. Eles vão dar um jeito de nos enganar.
Sarahuan não deu ouvidos ao amigo. Afinal, o que tinham a perder? Aliás, Sarahuan já devia saber o prato pretendido, pois não pensou nem dois segundos antes de arriscar um pedido.
- Peixe! Eu quero peixe fresco!
O dono da tenda curvou-se diante da solicitação e, olhando para o chão, respondeu:
- Eu não tenho peixe, senhor, estamos no meio do deserto, portanto não pagará pelo peixe...
- Pagar pelo peixe? Eu quero comida! Eu pedi peixe e você disse que se eu pedisse algo que não tivesse nós nada pagaríamos.
- O senhor não terá que pagar pelo peixe. Peça outra coisa...
- Vamos embora, Sarahuan. Ele está nos gozando!
- Oh não, senhor! Não estou! Mil perdões. Por uma moeda os dois poderão comer o melhor pão de todo o deserto.
- Você tinha razão, Hamat. São todos uns ladrões. De qualquer forma, eu estou morrendo de fome e espero que esse pão esteja bem assado.
- Meu pão é o melhor de todo o deserto! Vocês vão adorar! Uma moeda, por favor...
Hamat jogou uma moeda e os dois se sentaram a espera do pão. Realmente, não podiam negar que o cheiro era muito bom. Talvez fosse a fome, entretanto, quando a bandeja chegou, comeram até não agüentar mais.
Resolvido esse problema, Sarahuan e Hamat continuaram andando por entre as tendas da aldeia. Todas tinham nome: "Tenda dos Milagres", "Espadas de Prata", "Tenda do Fogo" entre muitas outras.
- Sarahuan, devemos procurar o quê?
- Não sei, Hamat. Se eu tivesse bastante dinheiro, entraria em cada uma dessas tendas. Vamos tentar encontrar mais alguma pista, um sinal...
- São milhares de tendas, Sarahuan. Milhares de pessoas. Isso aqui está muito mais cheio que da última vez que estive aqui. Há muitas tendas novas...
- Talvez tenhamos que encontrar as mais antigas... do tempo do meu pai... Você lembra delas?
- As tendas mais antigas ficam perto da torre, por ali... Uma das mais famosas era a "Tenda do Paradoxo". Nem sei se ainda existe.
- Vamos até lá. Algo me diz que estamos perto de encontrar o guardião do tesouro.
A "Tenda do Paradoxo" ainda existia e era a mais bem cuidada no passado. Agora, não passava de uma lona suja sustentada por cordas velhas. O cheiro estava insuportável.
- Vamos entrar, Hamat. Vamos comprar um paradoxo!
- Para mim, jogar dinheiro fora é o paradoxo.
Entraram na tenda e foram recebidos por um velho de barba branca e um turbante encardido.
- Sejam bem-vindos à tenda de Farabah. Uma moeda, por favor...
Sarahuan colocou uma moeda sobre o tapete onde estavam sentados e, então, o velho começou a falar.
- Quantas frações existem entre um e um e meio?
Sarahuan pensou por um segundo e, intrigado, respondeu.
- Bem, não dá pra saber, são infinitas...
O velho pareceu nem escutar e continuou falando.
- Quantas frações existem entre um e dez e meio?
- Infinitas também.
- Você me deu uma moeda e eu lhe dei um paradoxo.
- Mas qual? Não entendi! Já acabou?
- Eu lhe provei que existe um infinito maior que outro. Voltem outras vezes, que eu terei sempre um paradoxo para cada moeda em seu bolso.
- Mas que velho sem vergonha. Um infinito maior que outro. Eu não sei como, mas ele deve estar errado. Será possível?
- Eu lhe avisei, Sarahuan, antes do anoitecer estaremos sem dinheiro. É melhor você se controlar.
- Olhe lá, Hamat! Aquela tenda! A placa não lhe sugere nada?
- "Tenda do Tesouro". O nome é sugestivo. Quantas moedas ainda temos?
Os dois iam caminhando em direção à tenda quando foram abordados por uma criança.
- Não entrem lá! Já vi muitos entrarem e nunca mais sair! Venha para a tenda do meu pai. É muito melhor! Lá tem jogos e vocês poderão ficar ricos!
- Não, filho, obrigado. Meu patrão prefere a Tenda do Tesouro. Talvez amanhã...
- Se entrarem lá não haverá amanhã para vocês.
- Sai daqui, garoto, tome uma moeda e suma.
- Obrigado! Que Allah o proteja. Muito obrigado. Mas eu avisei...
Quando entraram na tenda, não havia ninguém para recebê-los. Tiveram de bater palmas até que alguém chegasse vindo dos fundos da tenda. Era um homem muito alto e forte. O rosto estava encoberto e só os olhos apareciam. Ele deu dois passos, parou e cruzou os braços. Outro homem mais baixo, então, saiu dos fundos da tenda e veio até eles.
- Que Allah esteja com os senhores. Não reparem a poeira. As criadas trocarão os tapetes em menos de um minuto.
- Podemos voltar depois...
- Não, Hamat. Vamos esperar. - Sarahuan tinha certeza de que estava no lugar certo. O guardião do tesouro deveria estar por perto. O homem mais baixo tornou a falar.
- São raras as visitas a esta tenda. O povo tem muito medo. Só os corajosos vêm até aqui.
- Você quer uma moeda? Por que esta tenda é chamada Tenda do Tesouro? Por que as pessoas temem chegar aqui?
- Não quero sua moeda. Existe um tesouro nesta tenda. Tão grande que não caberia no rio Eufrates. E ele poderá ser seu.
- Nesta tenda não cabem nem os cavalos que trouxemos - gritou Hamat - Deixe de história! Como funciona a brincadeira?
- Não é uma brincadeira. Descubra o que há em meu bolso e o tesouro virá até vocês.
- E se errarmos, lhe daremos uma moeda. Não teremos a menor chance. Sarahuan, vamos embora. Ele deve ter pelo menos uns dez bolsos naquela manta. Ele não nos dará qualquer oportunidade.
- Eu não quero uma moeda. Eu já tenho um tesouro! Se vocês errarem, vocês irão até ele.
- Que confusão é essa? - Sarahuan estava começando a achar que aquela era mais uma tenda de ladrões - Se acertarmos o que você tem no bolso, o tesouro virá até nós e, se errarmos, iremos até o tesouro? E onde está esse tesouro?
- No inferno! - respondeu de pronto o homem - Por isso todos têm medo. Não precisam arriscar. Podem ir embora. Muitos fazem isso. Mas se tentarem e errarem, serei obrigado a levá-los até o tesouro. Todos têm o direito de vê-lo. Mas devo prevenir-lhes de que não sobreviverão.
- Como saberei que não está me enganando? Quantos bolsos você tem aí?
- Eu serei justo. Se acertar, dar-lhe-ei o tesouro.
- Sarahuan, ele vai nos enganar. Ele não tem tesouro algum. Vamos embora.
- Espere, Hamat. Eu sei o que ele tem no bolso. Só não sei se posso confiar nele.
- Sarahuan, vamos fazer o seguinte: você me diz o que ele tem no bolso e eu arrisco. Saia daqui agora e me deixe tentar sozinho.
- Oh, vocês podem fazer isso - disse o homem baixo - mas, neste caso, eu também poderei trocar de bolso...
- Como assim? Que diferença faz eu ou ele arriscar? - esbravejou Hamat.
- Que diferença faz qual bolso usar? - retrucou o homem baixo.
- Não adianta, Hamat - interveio Sarahuan - tem de ser eu. E vou arriscar.
- Não, Sarahuan! Ele vai nos enganar e depois não adiantará arrependimentos.
- Calma, Hamat, eu sei o que ele tem no bolso.
- Você não sabe onde está se metendo, isso sim...
Sarahuan olhou nos olhos do pequeno homem que aguardava impassível. O jovem rei não tinha a intenção de desistir...
- Está bem, Sarahuan, faça o que você quiser. Ao seu lado eu enfrentarei qualquer coisa. O que é que ele tem no bolso?
- Eu vou lhe dizer, meu amigo... e vou dizer também para este velho... Você tem no bolso uma peça de Xadrez. Uma torre de ouro branco!
Imediatamente, o pequeno homem e o outro atrás dele se ajoelharam e abaixaram o rosto até o chão em reverência.
Segundo a lenda, o Rei Sarahuan Al-Faraq recuperou sua fortuna e expulsou os lákmidas para sempre de suas terras. Até bem recentemente era um total mistério o que o Rei Sarahuan Al-Faraq viu naquele compartimento secreto, que pudesse levar à descoberta do tesouro da família. Porém, uma rocha encontrada em 1.997, na região de Al-Lith, na atual Arábia, continha uma gravura representando a posição das peças no tabuleiro que, segundo diz a lenda, foi encontrado por Sarahuan.
O arqueólogo que encontrou a rocha associou-a imediatamente ao diagrama da referida lenda do Rei Sarahuan e levou uma reprodução até o grande enxadrista local, Onam Odranoel. Após narrar toda a lenda para o enxadrista, este começou a discorrer.
- Esse diagrama, na verdade, é um mapa. Ele mostra, com muita precisão, qual foi o primeiro e o último movimento da torre-da-dama branca (ou torre da rainha, como queiram).
Como uma das torres não foi encontrada junto ao tabuleiro, Sarahuan entendeu que esta era a mensagem deixada por seu pai: se ele encontrasse a torre, encontraria o tesouro. Portanto, o mapa à sua frente mostrava os movimentos do próprio tesouro.
- Mas eu não vejo linhas ou anotações no tabuleiro. Há apenas as peças.
- De fato, são exatamente as peças sobre o tabuleiro que nos servem de guia. Por exemplo, quantas peças negras você vê sobre o tabuleiro?
- Quatorze!
- Exatamente. Isso significa que as negras tiveram duas peças capturadas ao longo da partida.
- Repare na estrutura de peões brancos. Quantas capturas foram necessárias para que essa estrutura fosse possível?
- Bem, bastaria uma: O peão de h2 capturou em g3.
- Muito bem! Qual peça negra foi capturada em g3?
- Não pode ter sido o peão negro da coluna a, pois ele não teria como chegar em g3. Só pode ter sido o bispo negro de casas pretas.
- Você acertou novamente. Repare que, para esse bispo ter saído de f8, foi preciso que o peão negro da coluna g desse passagem e ele só pode ter dado passagem capturando uma peça branca em f6 (caso contrário, esse peão jamais chegaria em e5).
- Qual peça branca este peão, então em g7, capturou em f6?
- Qualquer uma. Quero dizer, uma dama ou um bispo ou uma das torres...
- Preste atenção: A torre-do-rei branca não pode ter sido, pois ela estava presa em h1 (o peão de h2 ainda não havia capturado o bispo negro). A torre-da-dama branca também não pode ter sido porque ela jamais conseguiu sair de trás da fileira de peões brancos.
- Restam a dama e o bispo brancos. Pode ter sido uma das duas.
- Exato! Porém, para que o bispo ou a dama branca saíssem, foi necessário que as brancas jogassem b2b3. Caso contrário, essas peças jamais sairiam. Por outro lado, quando as brancas jogaram b2b3, o bispo negro de casas brancas já deveria estar em a2, (caso contrário, ele não teria como chegar ali).
- Já entendi, Onam. Antes das brancas jogarem b2b3, as negras tiveram de levar seu bispo de c8 até a casa a2.
- Estaria tudo bem se não fosse por um detalhe: para o bispo negro em a2 ter saído de c8, sua casa de origem, foi preciso que o peão negro da coluna d já tivesse capturado uma peça branca em c6, para dar passagem.
- Mas como? Se todas as peças brancas estavam enclausuradas? Você mesmo disse que a torre-do-rei branca só sai quando o peão de h2 sair; que só sai quando o bispo negro de f8 sair; que só sai quando o peão negro de g7 sair; que só sai quando o bispo ou dama brancos saírem; que só saem quando o peão branco em b2 sair; que só sai quando o bispo negro de c8 sair; que só sai quando o peão negro de d7 sair; que só sai quando capturar uma peça branca. Mas não há peça branca que esse peão possa capturar. A posição é impossível!
- Não! Na verdade apenas chegamos à conclusão de que a posição seria impossível se o bispo negro em a2 fosse original. Mas nós acabamos de provar que ele não é!
- Eu acho que não estou mais entendendo...
- A única possibilidade da posição do diagrama ser legal, diante das regras do jogo de Xadrez, é o bispo negro em a2 ser um peão promovido.
- Quer dizer que o peão negro da coluna a promoveu?
- Sim! E o fez em b1 que é casa branca. Repare na estrutura de peões negros: quantas capturas foram necessárias para que ela fosse possível?
- O peão em c6 fez uma captura e o peão em e5 fez duas.
- Temos, no total, três capturas. Quantas peças brancas estão no tabuleiro?
- Doze. Isso significa que as negras fizeram quatro capturas.
- Bem, se a estrutura de peões negros exigiu três das quatro capturas possíveis, o peão negro que promoveu só pode ter feito, no máximo, uma captura. Isso significa que o primeiro lance de peão das brancas foi b2b3.
- Por que não pode ter sido a2a3?
- Porque, assim, o peão negro da coluna a jamais passaria. Foi preciso jogar b2b3, o que significa que o cavalo negro já estava em a1 (senão, ele não teria como chegar lá).
- Então foi ele que comeu a torre-da-dama branca?
- Não! Todas as peças brancas foram capturadas por peões negros, lembram-se? A torre teve de dar passagem e fez isso jogando Tb1 (não se esqueçam que o bispo branco ainda estava preso em c1 e o peão de a3 ainda estava em a2).
- Então este foi o primeiro movimento da torre!
- Exato! "Torre um do Cavalo da Dama (Rainha)".
- E o último movimento dessa torre, obrigatoriamente, foi Tb1 para b2, isto é, "Torre Dois Do Cavalo da Dama (Rainha)", permitindo que o peão negro da coluna a fizesse a captura e promovesse um bispo em b1.
- Então a posição do diagrama é possível! E como o Rei Sarahuan soube onde estava o tesouro?
- Este mapa mostra exatamente o caminho percorrido pela torre-da-dama branca: o movimento Tb1, entre os enxadristas, também é descrito como "Torre um do cavalo da dama (rainha)" e o último lance Tb2 também é descrito como "Torre dois do cavalo da Dama (rainha)". Sarahuan entendeu que a torre branca viajou, junto com o tesouro, pela rota do sul passando por Tiseh (primeira torre na rota dos Cavalos da Rainha) e Qimahjaeth (a segunda torre na rota dos Cavalos da Rainha).
- Minha nossa! Quer dizer que a história sobre o Rei Sarahuan Al-Faraq pode não ter sido uma simples lenda?
- Bem, isso eu já não posso dizer... mas, se é uma lenda, quem à inventou realmente é um gênio!
Para ilustrar toda a explicação, Onam simulou uma pequena partida - provavelmente a última partida jogada pelos pais de Sarahuan.
1-Cc3,Cf6; 2-Cb1,Ce4; 3-Cc3,Cc5; 4-Tb1,Cb3; 5-Ce4,Ca1; 6-b3,a5; 7-Bb2,a4; 8-Bf6,PxBf6; 9-Dc1,Bh6; 10-Db2,Bf4; 11-De5,Bg3; 12-PxBg3,PxDe5; 13-Th6,a3; 14-Tc6,Pd7xTc6; 15-Tb2,Bg4; 16-Cc3,Bf3; 17-CxBf3,PxTb2; 18-a3,b1=B; 19-Cg1,Ba2; 20-Cb1 e chegamos à posição do diagrama.
O Blog dos Amigos do Xadrez é um grupo de jogadores de diferentes regiões que possui como objetivo difundir o Xadrez através da internet, contando para isso com a divulgação de notícias do mundo enxadrístico atual, curiosidades, história e muito mais desse jogo que perdura há quase 3 milênios!!! Confira nosso acervo!
terça-feira, 8 de janeiro de 2008
A Lenda De Faraq
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